A Inquisição cristã

O cristianismo, em seus primórdios, trouxe poucas mudanças. Os camponeses viam na história de Cristo somente uma versão nova de suas próprias lendas antigas sobre a Deusa Mãe e sua Criança Divina, que é sacrificada e nasce novamente. A perseguição começou lentamente.

Os séculos XII e XIII assistiram ao renascimento de aspectos da Antiga Religião através dos trovadores, que escreviam poemas de amor para a Deusa sob o disfarce de damas da nobreza da época. Catedrais magníficas foram construídas em homenagem a Maria, que havia incorporado vários aspectos da antiga Deusa. A Feitiçaria foi declarada como um ato de heresia e, em 1324, um coven irlandês liderado por Dame Alice Kyteler foi levado a julgamento pelo bispo de Ossory por veneração a um deus não-cristão.  Dame Kyteler salvou-se em virtude de sua condição social, mas os seus seguidores foram queimados.

Guerras, cruzadas, pragas e revoltas campesinas assolaram a Europa nos séculos que se seguiram. Joana D'Arc, a "Donzela de Orleans", conduziu para a vitória os exércitos da França, mas foi queimada como uma bruxa pelos ingleses. A estabilidade da Igreja havia sido abalada e o sistema feudal começara a ruir. O universo cristão foi tomado por movimentos messiânicos e revoltas religiosas e a Igreja não podia mais tolerar com tranquilidade os seus rivais. 

Em 1484, a bula papal de Inocêncio VIII liberou o poder da Inquisição contra a Antiga Religião.  A perseguição era direcionada mais intensamente contra as mulheres: de um número estimado em nove milhões de bruxos que foram mortos, 80% eram mulheres, incluindo crianças e moças, as quais, acreditava-se, haviam herdado o "mal" de suas mães. O asceticismo do cristianismo primitivo, que negava o universo carnal, havia degenerado, em algumas alas da Igreja, em ódio àqueles que traziam esta sensualidade consigo. A misoginia, o ódio às mulheres, transformou-se em forte elemento no cristianismo medieval.

O terror era indescritível. Uma vez denunciada por qualquer pessoa, desde um vizinho maldoso até uma
criança agitada, a bruxa sob suspeita era repentinamente presa, sem aviso prévio e não lhe era permitido que voltasse para casa. Ela era considerada culpa da até que fosse provada a sua inocência. A prática comum era desnudar a vítima, raspar-lhe os pelos completamente na esperança de encontrar as "marcas" do diabo, as quais poderiam ser verrugas ou sardas. Com frequência, a acusada era espetada, em todo o seu corpo, com agulhas compridas e afiadas; acreditava-se que os pontos em que o Diabo houvesse tocado fossem indolores. Na Inglaterra, a "tortura legal" não era permitida, mas os suspeitos eram privados de sono e submetidos a lenta inanidade antes de serem enforcados. No continente, toda atrocidade imaginável era praticada - a roda, os apertadores de polegares, "botas" que quebravam os ossos das pernas, surras terríveis - a lista completa dos horrores da Inquisição. Os acusados eram torturados até que assinassem confissões preparadas pelos inquisidores, até que admitissem as suas ligações com Satã e as práticas obscuras e obscenas, as quais nunca fizeram parte da verdadeira Feitiçaria. Ainda mais cruel, eram torturados até que dessem os nomes de outras pessoas, até que a cota de treze de um coven estivesse completa. Com a confissão obtinha-se uma morte mais misericordiosa: o estrangulamento antes da fogueira. Suspeitos recalcitrantes, que sustentavam a sua inocência, eram queimados vivos.

Caçadores de bruxas e informantes eram pagos por condenações e muitos consideravam esta uma carreira lucrativa. A instituição médica masculina, em ascensão, acolheu com prazer a chance - Em geral as bruxas são mulheres. A opção pelo gênero pretende incluir os homens e não excluí-los - de eliminar as parteiras e os herbanários dos vilarejos, seus principais concorrentes econômicos. Para outros, os julgamentos de Feiticeiras davam-lhes a oportunidade de se verem livres de "mulheres petulantes" e vizinhos indesejados. 

As Feiticeiras afirmam que poucos daqueles que foram julgados à época das fogueiras, na realidade, pertenciam a covens ou eram membros da Arte. As vítimas eram pessoas idosas e senis, mentalmente perturbadas, mulheres cuja aparência era desagradável ou sofriam de alguma deficiência física, beldades locais que machucaram os egos errados por terem rejeitado suas investidas ou que haviam despertado ardente desejo em um padre celibatário ou num homem casado. Homossexuais e livres-pensadores também eram apanhados nessa mesma rede. Às vezes, centenas de vítimas eram mortas em um só dia.  No bispado de Trier, na Alemanha, duas aldeias permaneceram com somente uma mulher cada, após os Julgamentos de 1585.

Esse período foi também a época em que o comércio de escravos africanos tinha alcançado o seu auge e a conquista das Américas ocorrera. As mesmas acusações levantadas contra as bruxas, acusações de barbaridades e veneração ao diabo - foram utilizadas para justificar o aprisionamento dos africanos (supostamente trazidos ao Novo Mundo para serem cristianizados) e a destruição das culturas e o genocídio em massa dos nativos americanos. As religiões africanas abrigaram-se sob o manto protetor da nomenclatura católica, denominando os seus orixás de santos, e sobreviveram como as tradições da macumba, santería, lucumi e vodu, religiões que foram tão injustamente hostilizadas quanto a Arte.

Na América, assim como na Europa, a Arte trabalhou ocultamente e tornou-se a mais secreta das religiões. As tradições eram passadas somente para aqueles que eram totalmente confiáveis, geralmente membros de uma mesma família.  Comunicações entre os covens foram rompidas; eles não podiam mais se encontrar nos grandes festivais a fim de partilhar conhecimentos e trocar resultados de feitiços ou rituais. Partes da tradição foram perdidas ou caíram no esquecimento. No entanto, de alguma maneira, em segredo, silenciosamente, sob as brasas incandescentes, por trás dos postigos, codificada como contos de fadas ou canções folclóricas, ou escondida nas memórias subconscientes, a semente foi passada.

Após o término das perseguições, no século XVIII, veio a era da descrença. A lembrança da verdadeira Arte havia esmaecido; os hediondos estereótipos que permaneceram pareciam ridículos, risíveis ou trágicos.  Somente no século XX as feiticeiras foram capazes de "sair do quarto de despejo", por assim dizer, e agir contra a imagem do mal com a verdade. A palavra "bruxa" possui tantas conotações negativas que várias pessoas perguntam por que a usamos.  No entanto, recuperar a palavra "bruxa" é recuperar o nosso direito, como mulheres, de sermos poderosas; como homens, de conhecer o feminino presente no divino. Ser uma bruxa é estar identificada com nove milhões de vítimas do fanatismo e do ódio e de sermos responsáveis por moldar um mundo no qual o preconceito não faça mais vítimas. Um bruxo é um "moldador", portanto, torna-se um dos sábios, cuja vida está impregnada de magia.




Referencia bibliografia: A dança cósmica das feiticeiras - Starhawk

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